dollface

Acabei de ver a série Dollface que usei enquanto durou como um intervalo curto de descanso do cérebro. Foi uma experiência antropológica interessante. Eu nunca tive um clique, um pack de amigas, nunca fui à casa de banho aos pares, nunca vivi e morri pelo código da irmandade. No sexto ou sétimo ano tive um clube de poetisas com duas amigas, três pessoas unidas por pouco talento para escrever poemas e um amor adolescente pela poesia melodramática melhor exemplificada pelos sonetos de Florbela Espanca. Também passei pela fase romântico-gótica de passear pelos cemitérios, aparentemente herdada da minha mãe e rapidamente curada assim que passei a ter alguém dentro de um deles. Acredito que essas fantasias só sobrevivem até enterrarmos alguém que amamos.

Continuo a não ter um pack, um clique, uma irmandade do sagrado feminino com quem ir fazer xixi aos pares. Mas tenho-as a elas, as minhas sorpresas, que são retorcidas e defeituosas como eu. E temos um código de livros e desabafos e estar com elas é como regressar a casa.

on earth we’re briefly gorgeous

“The children, the veal, they stand very still because tenderness depends on how little the world touches you.”

a impersistência da memória

A posteridade já não existe. Toda a gente escreve um livro, tem um blog, lança um disco, vai à televisão. Há tantas ideias novas ao mesmo tempo que tudo é cada vez mais efémero, mais mutável, menos persistente. Todos os dias desaparecem de circulação demasiados livros para que seja possível manter a pretensão de que deixar obra feita é garantia de imortalidade ou de alguns anos de persistência na memória colectiva depois de nos extinguirmos. Cada vez mais existe apenas o que fazemos agora, em cada momento. Há demasiadas borboletas a bater asas para que se saiba qual causou a tempestade.

A avó já morreu, respondo eu ao meu filho, esperando que os seus 4 anos não lhe permitam perceber que neste já se esconde, inexorável, a morte de todos nós. Há coisas que seremos sempre demasiado novos para perceber.

meu querido ano todo

Gosto de morar numa cidade pequena. Gosto que o arquitecto com quem estou a pensar uma casa tenha sido aluno da minha mãe quando ela estava grávida de mim. Que a irmã dele tenha sido minha professora e que o pai tenha cantado comigo no coro. Gosto que um dos melhores amigos do meu filho seja filho de uma pessoa com quem brinquei quanto eu tinha a idade deles e neto de uma amiga da minha mãe, minha professora de português. Gosto de encontrar na rua uma antiga professora, afamada solteirona que morava com os pais já entrada em anos e de a ver, finalmente, de braço dado com alguém e um ar feliz. Gosto de conhecer quem me vende os legumes, a fruta e o peixe, como a minha mãe conhecia quando eu era pequena. Gosto que quem me vende a fruta e os legumes seja minha vizinha, a quem posso ligar para me trazer as coisas para cima, quando não consigo ir ao mercado. 

Claro que tudo se sabe e privacidade é uma utopia. Mas prefiro isto, estes cruzamentos entre as nossas vidas nas voltas que elas dão ao anonimato frio e sozinho das grandes cidades. 

dias de telha

A vida devia ser mais que este eterno cansaço.

odiozinhos de estimação 

Gente que escreve “gambas à guilho”. 

Vejo-nos a levar os nossos filhos à escola ou sentados nas reuniões, nós que andámos juntos na escola, se não na mesma turma em turmas paralelas, nós que fizemos intermináveis meses de praia juntos, que jogámos volei e ao buraco, que fizemos moches, que íamos lá abaixo à noite, que reclamávamos sempre que nesta terra não há nada que se faça, que acabávamos invariavelmente na padaria aberta de madrugada, e acho-nos tão novos. Não temos idade para ter filhos, empregos, contas para pagar, cabelos brancos e primeiras rugas. Ainda ontem dançávamos Robert Miles todos os sábados à noite, ainda ontem saiu o Dookie, ainda ontem bebíamos Smirnoff Mule e ríamos como se aquele verão não tivesse fim.