Anda a correr a internet um texto que apela à sensibilização de uma pessoa, aparentemente compatível com uma outra pessoa doente, e que se recusou à doação de medula óssea.
Vamos lá a ser se nos entendemos. A doação de órgãos ou tecidos por um dador vivo só pode ser feita em determinadas condições: se o dador for autónomo (isto é, se não for menor ou declarado incompetente), se der consentimento informado e se a sua decisão for livre.
Autónoma pressuponho que esta pessoa seja, afinal estava inscrita como dador.
Foi devidamente informada? É possível que não – eu sou dadora e quando me inscrevi ninguém me informou dos procedimentos de dádiva que, ainda hoje, podem ser de 2 tipos: dádiva de sangue periférico ou o verdadeiro transplante de medula óssea. Nenhum destes procedimentos está isento de riscos para o dador. A colheita de células do sangue periférico é, no seu acto final, uma coisa simples, igual a uma dádiva de sangue. Mas implica, previamente, injecção do dador com factores de crescimento, que vão estimular a sua medula óssea a produzir mais células, para aumentar a probabilidade de estas células (as chamadas células tronco hematopoiéticas) serem colhidas no sangue periférico. Isto pode dar dores ósseas, infecções e aumento do risco de trombose. A colheita de medula óssea na fonte é um processo doloroso, que implica anestesia e esta, como todos sabemos, tem riscos. Como tal, este potencial dador pode 1) não ter sido devidamente informado no momento da inscrição e, ao sê-lo agora, ter resolvido que não queria correr estes riscos ou 2) até ter sido bem informado mas não estar, da mesma forma, disposto a correr os riscos inerentes ao processo.
A decisão desde potencial dador nunca mais será livre, mesmo que o encontrem. Porque há todo um universo de pessoas investidas em convencê-lo a doar. Há toda uma sociedade disposta a culpá-lo se não o fizer, a acusá-lo de egoísmo, de falta de civismo, de crueldade.
Imaginem que são vocês. Que, quando se inscreveram, não vos informaram direito, que vos disseram que doar medula óssea era tão fácil como doar sangue, que não tinha risco nenhum para o dador. Ou imaginem que, bem ou mal informados, as vossas circunstâncias de vida mudaram. Que engravidaram. Que o vosso cônjuge foi despedido e vocês são o único ganha-pão lá de casa. Que têm filhos, que têm pais que dependem de vocês. Ou simplesmente que têm medo. A doação por dador vivo pressupõe – está lá, nos direitos do dador – que o dador pode desistir a qualquer momento. Mesmo no segundo final. Sem ter de dar justificações ou pedir desculpas. Porque só assim as pessoas são verdadeiramente livres para escolher doar.
Isto que se está a passar é muito, muito perigoso. Aliás, eu acho que a equipa que está a gerir este transplante devia, já, excluir esta pessoa como potencial dador. Esta onda social coage, culpa, obriga o dador a doar – algo que é factor de exclusão à dádiva, eticamente falando. Esta pessoa não pode NUNCA ser identificada, por ninguém. Porque tem todo o direito a escolher não dar, seja por que motivo for.
Era maravilhoso se toda a pessoa doente tivesse um dador compatível que lhe pudesse salvar a vida. Mas se começamos a ignorar os direitos dos dadores corremos o risco de metade deles desaparecer amanhã. Para não falar da liberdade pessoal, de auto-determinação, que pisamos sem pensar. A dádiva tem de ser livre e esta pessoa, neste caso, nunca mais o será.