Category Archives: gaveta das angústias

ao contrário 

Vi esta fotografia da Zadie Smith, de olhar tão triste e distante, e fiquei a pensar em como há tantos meses que não penso em coisas. A vida atropela-nos e põe-nos a funcionar em piloto automático, numa espécie de sobre-vida mais que vida, sempre à espera que alguma coisa acabe para que a real vida comece e sem perceber que isto é que é a vida. E fiquei a achar que os grandes escritores, os que pensam a fundo nas coisas, não podem ter vidas e filhos e empregos porque senão não lhes sobra tempo para pensar. Não são sós porque são grandes, são grandes porque são sós.

primeiras vezes que podiam nunca existir

Cheiras a brufen e a febre em vez de cheirares a bolachas. A tua febre não é como a dos livros, aquela que é boa porque ajuda a combater os bichos. A tua febre queima-me as mãos e o coração, carne da minha carne a arder-me nos braços.

o blog mais monótono de sempre

É um bocado sufocante que o meu estado de espírito se tenha tornado dependente, em exclusivo, da “vontade” do meu filho. Quando me perguntam como estou respondo habitualmente em função das horas que dormi e da qualidade da noite que passou. Ou das sestas que ele  tenha feito durante o dia, permitindo-me ser um bocadinho mais que a sua fonte de alimentação e conforto. Dói ver-me assim reduzida.

Às vezes há dias em que me arrependo até à última célula do meu corpo. Pela perda da minha paz, que custou tanto a encontrar e conquistar. Pelas aulas que estou a perder, por não estar a cumprir o meu sonho de sempre. Há dias em que me sinto um trapo, incapaz de continuar. E dias em que o sol espreita atrás do nevoeiro.

Para a semana volto à escola e já prevejo um misto de felicidade e angústia. Dizem que há vida depois dos filhos e neste mês comecei a acreditar que isso só aconteceria daqui a 18 anos. Afinal é na segunda. E ainda que sejam só 6h por semana, vai fazer-me bem o ar, as pessoas, o regresso a mim.

pick up the pieces and move on

Os filmes e os livros dizem todos que crescer dói. Sempre achei que sim, que doía, que era normal doer. Até que encontrei o meu lugar no mundo e deixou de ser assim. E eu deixei de acreditar que sim, que doer é normal.

Há dias que doem. Dias em que quem já cá não está nos faz mais falta que respirar. Dias em que olhamos para trás e remoemos nas asneiras que gostaríamos de não ter feito, em que pensamos no que andamos a fazer e não devíamos e no que devíamos andar a fazer e não andamos. Mas, feitas as contas, noves fora nada, o saldo deve ser sempre positivo. E se não é então devemos fazer alguma coisa para mudar.

Era nisto que eu acreditava, se calhar por nunca ter tido grandes dificuldades na vida – a maioria das minhas batalhas foram pequenas e fáceis. Mas apesar disso nunca fui verdadeiramente feliz até alguns anos depois dos 20. Fazer 30 anos angustiou-me muito menos que fazer 20 ou 25, porque aos 30 anos eu sabia, finalmente, quem era e para onde ia. O como ia-se fazendo, com vontade todos os dias.

Mas, de vez em quando, há coisas que se partem dentro de nós. Coisas pelas quais lutamos e das quais temos de desistir, não porque deixemos de as querer, mas porque é preciso aceitar que nunca vão ser como queríamos. Lutar, lutar sempre, cansa. E às vezes é preciso admitir que não vale a pena remar contra aquela maré, ceder, ajustar as expectativas. Custa muito, mas deve fazer parte da tal dor de crescer de que sempre ouvi falar e na qual tinha deixado de acreditar.

o dador e os seus direitos

Anda a correr a internet um texto que apela à sensibilização de uma pessoa, aparentemente compatível com uma outra pessoa doente, e que se recusou à doação de medula óssea.

Vamos lá a ser se nos entendemos. A doação de órgãos ou tecidos por um dador vivo só pode ser feita em determinadas condições: se o dador for autónomo (isto é, se não for menor ou declarado incompetente), se der consentimento informado e se a sua decisão for livre.

Autónoma pressuponho que esta pessoa seja, afinal estava inscrita como dador.

Foi devidamente informada? É possível que não – eu sou dadora e quando me inscrevi ninguém me informou dos procedimentos de dádiva que, ainda hoje, podem ser de 2 tipos: dádiva de sangue periférico ou o verdadeiro transplante de medula óssea. Nenhum destes procedimentos está isento de riscos para o dador. A colheita de células do sangue periférico é, no seu acto final, uma coisa simples, igual a uma dádiva de sangue. Mas implica, previamente, injecção do dador com factores de crescimento, que vão estimular a sua medula óssea a produzir mais células, para aumentar a probabilidade de estas células (as chamadas células tronco hematopoiéticas) serem colhidas no sangue periférico. Isto pode dar dores ósseas, infecções e aumento do risco de trombose. A colheita de medula óssea na fonte é um processo doloroso, que implica anestesia e esta, como todos sabemos, tem riscos. Como tal, este potencial dador pode 1) não ter sido devidamente informado no momento da inscrição e, ao sê-lo agora, ter resolvido que não queria correr estes riscos ou 2) até ter sido bem informado mas não estar, da mesma forma, disposto a correr os riscos inerentes ao processo.

A decisão desde potencial dador nunca mais será livre, mesmo que o encontrem. Porque há todo um universo de pessoas investidas em convencê-lo a doar. Há toda uma sociedade disposta a culpá-lo se não o fizer, a acusá-lo de egoísmo, de falta de civismo, de crueldade.

Imaginem que são vocês. Que, quando se inscreveram, não vos informaram direito, que vos disseram que doar medula óssea era tão fácil como doar sangue, que não tinha risco nenhum para o dador. Ou imaginem que, bem ou mal informados, as vossas circunstâncias de vida mudaram. Que engravidaram. Que o vosso cônjuge foi despedido e vocês são o único ganha-pão lá de casa. Que têm filhos, que têm pais que dependem de vocês. Ou simplesmente que têm medo. A doação por dador vivo pressupõe – está lá, nos direitos do dador – que o dador pode desistir a qualquer momento. Mesmo no segundo final. Sem ter de dar justificações ou pedir desculpas. Porque só assim as pessoas são verdadeiramente livres para escolher doar.

Isto que se está a passar é muito, muito perigoso. Aliás, eu acho que a equipa que está a gerir este transplante devia, já, excluir esta pessoa como potencial dador. Esta onda social coage, culpa, obriga o dador a doar – algo que é factor de exclusão à dádiva, eticamente falando. Esta pessoa não pode NUNCA ser identificada, por ninguém. Porque tem todo o direito a escolher não dar, seja por que motivo for.

Era maravilhoso se toda a pessoa doente tivesse um dador compatível que lhe pudesse salvar a vida. Mas se começamos a ignorar os direitos dos dadores corremos o risco de metade deles desaparecer amanhã. Para não falar da liberdade pessoal, de auto-determinação, que pisamos sem pensar. A dádiva tem de ser livre e esta pessoa, neste caso, nunca mais o será.

anti-histamínico para a alma

Não há muitas coisas que me tenham chateado no crescer – e as que há são imensamente inferiores à serenidade e paz de espírito que os anos me trouxeram, assim genericamente falando.

Mas há uma, que são várias, que me custa e que se faz sentir volta e meia. Resume-se na perda de inocência, talvez, mas é mais específico que isso. É uma percepção ampliada das pessoas que nos rodeiam. É percebermos que há pessoas à nossa volta que são muito diferentes das que pensávamos que elas eram quando nós éramos crianças e elas eram adultos. E percebemos agora melhor do que antes porque estamos mais atentos, porque sabemos ler melhor as pessoas, porque nos interessamos mais e porque nos escondem menos. E também, claro, porque as pessoas também envelhecem e mudam e frequentemente fazem-no para pior.

Custam-me as novas alergias que vou desenvolvendo a alguma gente. Custa-me a cegueira selectiva que é preciso escolher diariamente para conseguir lidar com certas pessoas. E custa-me querer distância, muito mais que abraços.

complexo divino

Dizem que os médicos são seres arrogantes e eu acredito. A muitos falta humildade, capacidade empática, espírito de serviço. Uma das minhas piadas favoritas é a que pergunta sobre a diferença entre um médico e deus e responde que deus não tem a mania que é médico.

Mas, pensava eu, claramente enganada, que esta coisa da arrogância só lhes entrava pelos poros a pulso, fruto da experiência e do incrível que deve ser salvar algumas vidas. Ou, vá, que lhes podia dar no início, ao entrar no curso melhores alunos deste mundo e arredores, para lhes ser depois arrancado a ferros pelos verdadeiros campeões da coisa que lhes dão aulas todos os dias, desaparecendo por uns anos para voltar, então, com a prática.

Espanto-me todos os dias com a inocência do meu engano. Se eu, que acredito piamente que a minha camisola é verde, ouvir alguém a quem reconheço muito mais experiência e sabedoria dizer que é vermelha, vou acreditar. Posso bombardeá-lo de perguntas, encher-lhe os ouvidos até perceber, mas vou acreditar. Não me vou embora a dizer que o senhor hoje não está bom da cabeça, então a camisola não é obviamente verde, numa arrogância que já devia ter desaparecido ou ainda não devia ter regressado.

Tenho muito medo de futuros médicos assim.

*

Se tivesses decidido vir desta vez, era esta semana que chegavas.