Mais uma vez, o meu obrigada à clareza de pensamento e discurso da Helena:
1. A barulheira das reacções ao parecer do Conselho Nacional de Ética surpreendeu-me por vários motivos:
– Pareceu-me que as pessoas desataram a gritar, mesmo antes de lerem o parecer. É verdade que as declarações publicadas não primaram pela sensibilidade, mas o parecer em si não merecia esta reacção – insiste na necessidade da transparência, sugere que se olhe para a experiência de outros países, como o Canadá (vá lá que não disseram o Ghana…), e propõe que se use o mais barato dos melhores, o que me parece uma solução razoável. O Paulo Pedroso leu o parecer, e chegou à conclusão – como podem ler aqui – que a proposta é razoável, mas fugiu ao debate ético e dá um cheque em branco ao governo. Não sei como aconselhar “o mais barato dos melhores” e “mais transparência na decisão” seja um cheque em branco ao governo, mas deixo aí o link para quem o quiser ler e debater.
– O tipo de argumento usado (“a eutanásia dos pobres”, “o Mengele não faria melhor”) lembra-me a história de Pedro e o lobo: se invocam o nome de Mengele para isto, que nome usarão para reagir caso o SNS português seja alvo de reformas como o britânico?
– Vivo num país onde há dezenas de anos se diz que o sistema está a chegar aos seus limites, e que mesmo que se aplicasse todo o dinheiro disponível na saúde, não seria possível financiar tudo o que seria desejável, pelo que é preciso fazer escolhas e tomar decisões. Há cerca de dez anos começaram a aumentar as contribuições e a reduzir o leque de prestações – e as pessoas aceitam, porque percebem que essa é a única maneira de preservar o sistema público de saúde.
Para mim, é um dado adquirido que não há recursos suficientes, e que não posso exigir da minha sociedade solidária que invista na minha saúde para lá do razoável. (OK, depois vamos discutir – de cabeça fria e sem chamar para aqui o Hitler – o que é “razoável”.)
– Pergunto-me em que país vivem as pessoas. Porquê esta gritaria agora? Porque é que se lembram do Mengele a propósito de três medicamentos caríssimos, e não dizem nada quanto à duração da lista de espera para operar tumores malignos? Qual é o período médio de espera para essas operações, hoje em dia? Na Alemanha espera-se no máximo uma semana; em Portugal, uma amiga minha esperou meio ano (podia ter metido uma cunha para passar à frente na lista, mas não meteu – e só esta frase seria motivo para muita gritaria, mas estranhamente ninguém parece muito incomodado com o sistema de cunhas que acompanha o SNS).
Contudo, compreendo em parte esta reacção: num país em regime de austeridade e consequente recessão, onde as pessoas têm preocupações realmente existenciais e todos os dias contam receber mais notícias terríveis, aparecer alguém a falar de forma insensível e pouco articulada sobre a necessidade de poupar no sector da Saúde faz soar todas as campainhas de alarme.
2. Falaram em humanismo, e pediram-me filosofia.
Em termos de filosofia, sou muito Sócrates: só sei que nada sei, e por nada deste mundo queria fazer parte dessas Comissões de Ética, ou ser Ministra da Saúde. E sou um bocadinho Diógenes: a filosofia começa em casa. Mais concretamente: eu não quero que os meus filhos vendam a casa para pagarem uma remota possibilidade de me prolongarem a vida duas semanas ou dois meses. Do mesmo modo, não quero exigir da minha sociedade solidária um esforço exagerado para me oferecer o melhor de tudo, em termos de saúde. Entre investir 100.000 euros nas últimas semanas da minha vida, ou (isto sou eu outra vez a delirar) mandar vir por uns tempos uns médicos búlgaros que operem no turno da noite, de modo a reduzir substancialmente o tempo de espera para operações de tumores malignos, prefiro que me deixem morrer em paz e fiquem lá com os 100.000 euros para fazer essas operações.
O Philippe Ariès tem um livro muito interessante, “História da Morte”, onde ilustra o modo como as sociedades olham para a morte dos humanos. Enquanto o homem medieval reconhecia o momento em que a morte chegava, e o enfrentava com naturalidade, as pessoas do nosso tempo morrem não porque a morte faça parte da vida, mas porque a medicina falhou. O que explica que nos últimos dez dias da vida de uma pessoa se gastem enormidades em medicamentos e máquinas. Claro que nunca sabemos quando começou a contagem decrescente dos dez dias (ou não queremos aceitar) – o que torna a decisão de desistir muito complicada. Mesmo assim, convém termos isso presente: a vida humana tem um valor inestimável, mas nem todo o dinheiro do mundo nos livra da nossa morte.
A propósito: uma amiga falou-me do conselho que lhe deram no hospital: “leve o seu marido para casa, porque a gente aqui não o pode ajudar, e ao menos ele sempre morre ao lado dos que o amam”. Vão dizer que isto é uma medida economicista, ou de pura humanidade?
3. Disseram que todos têm direito a iguais cuidados de saúde, independentemente da idade e do meio social.
Quanto à idade: sabemos que não é assim. Se houver um coração para transplantar, dão-no à pessoa de vinte anos e não à de oitenta. Se houver apenas um pulmão artificial disponível, entre mim e um miúdo de cinco anos vão escolher o miúdo de cinco anos. Mesmo que eu tenha um seguro de saúde privado, o tal coração e a tal máquina serão dados a alguém mais novo e com mais hipóteses de poder aproveitar o uso desse bem escasso (há regras que só o crime pode contornar).
Quanto ao meio social: pode ser influência do que tenho ouvido na Alemanha, mas sinto-me bem com isso – a sociedade garante um standard de elevada qualidade; quem quiser mais que isso (exames de rastreio com mais regularidade que a garantida pelo SNS, quarto de duas camas no hospital, determinados tratamentos dentários, medicamentos de ponta – que, diga-se de passagem, nem sempre são sinónimo de qualidade -, tratamento hospitalar monitorado pessoalmente pelo chefe de serviço, determinado tipo de óculos, etc.) tem de fazer um seguro complementar. Se é fundamental que se assegure um nível muito digno de cuidados de saúde para todos, já tenho as minhas dúvidas que seja necessário e viável dar a todos aquilo que os mais ricos podem comprar.
Parece-me que temos de ter cuidado com os princípios, e ter presente que o óptimo pode ser um inimigo mortal do bom. E o bom é o Estado Social que ainda temos, e que é o possível tendo em conta a nossa situação económica (e nem vou falar da financeira).
4. Falaram em corrupção dos políticos, má distribuição de recursos, má gestão, necessidade de impedir as fugas aos impostos, etc. O costume.
Não vou discutir isso – muito há para fazer. Mas neste momento havia que responder a uma questão concreta: que critérios definir para o uso de três medicamentos que no ano passado custaram ao SNS 500 milhões de euros. Não podemos adiar esta resposta até termos cumprido a agenda moral e social que, como povo, andamos a empurrar com a barriga há centenas de anos.
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(todo o texto é da Helena e pode ser lido aqui)