ainda o dador e os seus direitos

Só mais uma vez, para ver se todos percebemos: o dador tem o direito de se recusar à dádiva sempre e em qualquer momento, sem ter de se justificar. Está lá, nos direitos dos dadores voluntários.

Eu estou inscrita como dadora e, neste preciso momento, se fosse chamada, provavelmente não estaria disponível. Porque estou grávida. Porque já perdi uma gravidez no último ano e porque não estou disposta a correr o risco de perder esta também. E se calhar até diria o porquê de não estar disponível, mas ninguém tem nada a ver com isso e podia não dizer. E como contornar isto? Avisamos, mês a mês, da nossa disponibilidade? Não faz sentido nenhum, não é prático nem é lógico.

A ideia peregrina de termos menos dadores mas dadores mesmo mesmo mesmo disponíveis também não funciona. Porque ninguém está livre de ver a sua situação mudar e, como tal, ninguém pode dizer, num dado momento da sua vida, que está para sempre disponível para doar. Nem podemos pôr os potenciais dadores a assinar um contrato de promessa de dádiva – isso é ir contra os direitos inalienáveis dos dadores e podem ter a certeza que a grande maioria desapareceria das listas amanhã, se essas alterações fossem feitas.

Quem errou neste processo todo não foi o dador. Foi a equipa médica, que na sua ânsia por dar boas notícias, pôs o carro à frente dos bois e disse ao doente que tinham encontrado um dador compatível. Não se pode. A única situação em que isto é admissível é se o dador desistir já dentro do hospital. Ou então arcam com a responsabilidade de ter de dar más notícias a seguir, garantindo o apoio necessário à família para que não se gere esta onda de ultraje. Porque é evidente que para a família isto é muito, muito difícil.

Este dador está a ser perseguido, acusado e julgado. Ninguém sabe se esta pessoa tem ou não razões socialmente válidas para desistir. Terá certamente razões válidas para si e isso é só o que importa.

Estas regras têm de existir e têm de ser gerais. Aqui não podemos andar caso a caso, tem de haver um código de ética e de actuação que oriente estes processos. Porque o processo tem de ser racional, numa situação de excessiva carga emocional. Não podem ser os familiares, os médicos directos do doente, o próprio ou gente que já passou por isto a tomar estas decisões – estas pessoas não têm distanciamento suficiente para o fazer racionalmente, de uma forma que traga os maiores benefícios, a curto e longo prazo, para a sociedade.

Eu percebo que a família e os amigos façam apelos – eu no lugar deles certamente também os faria. Mas não podem, não podem mesmo, pressionar os dadores. Fazê-los sentir culpados pela desistência. Porque este dador até pode não estar disponível agora e estar daqui a dois anos, para outra pessoa – mas com tudo isto achar que o melhor é deixar de ser dador. Eu não acredito que alguém tome de ânimo leve a decisão de não doar. Acredito que haverá motivos que justifiquem esta decisão – motivos que podem ser válidos só para o dador, mas aqui é ele que decide.

O doente tem direito à vida. O dador tem direito à não dádiva. E isto não são direitos que interferem uns com os outros. O doente não tem direito à vida por atropelamento do direito do dador à não dádiva – em última análise isso seria o mesmo que raptar o dador, tirar-lhe medula contra a vontade só para salvar a vida do doente. Custa aceitar isto, sobretudo para o doente e para quem lhe quer bem. Mas eticamente só pode ser assim.

4 thoughts on “ainda o dador e os seus direitos

  1. Espiral diz:

    Explicas tudo tão bem. =)
    Pena que mesmo assim as pessoas não entendem. As pessoas que na sua maioria até são (ou julgam) estar a ser boas pessoas estão a ser tão crueís e ditatoriais.

    Este tipo de fronteiras é ténue e as pessoas não têm mesmo noção quando as ultrapassam.

    Um beijo grande de uma leitora que vai ficar por aqui =)

  2. Queen of Hearts diz:

    Olha, linkei-te hoje um par de vezes, está bem? Para ilustrar um ponto de vista. Como não pedi autorização antes, peço depois. 🙂

  3. Carla R. diz:

    O outro lado deste assunto.
    Se é verdade que nem sempre se consegue ver os dois lados da moeda, principalmente num caso de vida ou morte, também é verdade que um post assim, desfaz muita confusão. Também vou divulga-lo. Muito util. Obrigada por nos ajudares a pôr os pontos nos is.

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